Júnio Almeida
Tudo começou quando... Bom, quando exatamente, não me lembro. É, para
mim foi um pouco diferente: eu não tive o privilégio do nascimento, da
infância; não vi meus músculos se desenvolverem aos poucos, meu bigode começar
a aparecer. Praticamente nasci barbudo (risos). Foi estranho, confesso. A vaga
memória que tenho é que acordei de repente com um grande vento soprado no meu
nariz. Dá pra acreditar? Sei que é difícil, mas é verdade! Foi assim que vim à
vida. Dessa maneira excêntrica, diferente, impressionante. Porém isso está
longe de ser o mais espetacular da minha criação!
A verdade é que tomei um susto quando olhei para quem tinha soprado nas
minhas narinas. Alguém tão belo, com um lindo sorriso no rosto. Ele estava tão
feliz. Inefável. Nunca vi ninguém tão feliz observando outra pessoa ao acordar.
O que mais se assemelha é com um pai que fica corujando o filho dormindo, e
quando este acorda, aquele sorri como bobo; simplesmente sem motivos. Aquele
sorriso foi contagiante: ficamos nós dois sorrindo por um bom tempo sem
sabermos o porquê. Aquela alegria era tão boa! (forte suspiro entre o sorriso)
Eu me levantei com a sua ajuda e saímos andando e conversando. Isso foi
outra coisa estranha - eu já "nasci" sabendo falar. Como? Não sei,
mas para quem tem poder para me criar do nada, por que não poderia me fazer
sabendo falar. O que sei é que saímos conversando sobre as coisas que eu estava
vendo. Tudo era novo (em todos os sentidos!) e então tínhamos muitos assuntos
para conversar. E ao andar nos deparamos com uns rios. Quando olhei aqueles
espelhos d'água e vi meu reflexo não entendi direito - não sabia se estava me
vendo ou se via meu Criador. Eu nunca tinha olhado em um espelho. Éramos muito
parecidos, mas não fisicamente. Aquele espelho d'água fez-me enxergar
introspectivamente - minha semelhança ao criador era referente à razão,
criatividade, discernimento. Senti-me absolutamente privilegiado, porque só eu
entre toda a criação parecia com o Criador nesses aspectos.
Andamos por um bom caminho até que chegamos a um determinado lugar
naquele magnífico jardim, chamado Éden - um maravilhoso paraíso. Daí ele me deu
uma tarefa: cuidar do lugar. Eu deveria cultivar e guardar. Existiam árvores
agradáveis, que eram maioria. Bons lugares para refrescar-me. Árvores frondosas
perto de rios com águas tranquilas. Frutas deliciosas, mas que para tê-las eu
precisava cultivar, cuidar. Não era um à-toa, eu tinha meu trabalho e amava
fazê-lo! Cuidava com dedicação. Quando Ele me criou, pôs em minha essência o
amor por isso, pelo trabalho.
No meio do jardim tinham duas árvores especiais: uma era árvore da vida;
a outra, a do conhecimento do bem e do mal. Quando eu me deparei com elas o
Senhor deixou bem claro: "De toda árvore do jardim você poderá comer como
quiser, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não poderá comer; porque,
no dia em que você comê-la, com certeza irá morrer.". Bem, eu guardei
aquela ordem no meu coração e fiquei quieto. Continuei meu trabalho
normalmente.
Confesso que isso me intrigou um pouco. Quando eu olhava para a árvore
da vida, não conseguia enxergar a importância dela, pois eu não sabia o que era
exatamente a morte. Então eu pensava "se eu comê-la ou não, continuarei
vivo". (ledo engano!) Se eu tivesse pensado mais, teria descoberto que a
vida é mais forte que a morte, e ela era a certeza da maravilhosa vida com meu
Senhor para sempre. Se tivesse me alimentado dela, a consciência de desprezo
pelo que me atrai à morte me afastaria de vez da outra árvore. Mas não pensei
por esse lado. Simplesmente deixei para lá. Continuei apenas me mantendo
afastado da árvore proibida enquanto trabalhava.
Com o passar do tempo, sentia que meu trabalho era bom, mas parecia não
ser suficiente. O Senhor trouxe os animais para perto de mim e nós ficamos
conversando sobre como seria o nome deles. Ele me disse que o nome que eu desse
para eles, seria para sempre. Começamos: passou um com chifre no meio
do focinho: aquilo era tão estranho! Mas dei um nome - rinoceronte. Passou outro, muito bonito por
sinal; muitos pelos no pescoço (a tal juba), muito imponente e parecia
importante; chamei-lhe de leão. Tiveram alguns que eu disse coisas nada a ver;
mudei de ideia, troquei o nome. Porém quando decidia, era aquele e pronto. Eram
muitos animais: muitos voavam, muitos animais nas águas... Isso demorou! E eu
ainda tinha que cuidar do jardim.
Ainda assim eu me sentia um tanto só, até porque eu via que todo animal
tinha seu parceiro, menos eu. Então um dia meu Senhor falou que eu ia dormir um
pouco mais. Na verdade Ele foi modesto, pois eu dormi bem mais; perdi
totalmente a noção de tempo. Nem sei por quanto tempo dormi; parece que
hibernei. Mas quando acordei... Eita...! Parecia um sonho.
Mal acreditei no que estava vendo. Ainda meio desacordado (e com algumas
remelas, afinal foi muito tempo dormindo) eu olhava para ela e não conseguia
entender direito o que era e quem era. Fui coçar do meu lado e senti que
faltava algo. Vi a cicatriz. Faltava uma costela. Na hora eu entendi! Exclamei:
"Você é parte de mim! Já que dei nome para tudo, vou dar o seu também:
você será chamada de mulher. Minha mulher!".
Eu não parava de sorrir (parecia um idiota). Ela era muito linda! Toda
delicada. Toda sensível. Sua pele, tão macia, cheirosa. Aí é claro que
começamos a conversar, afinal era meu dever ensinar para ela tudo o que o
Senhor tinha me ensinado. No começo ela parecia tímida para falar, perguntar,
mas depois que pegou embalo... Já sabe, né! (risos).
Conversávamos todos os dias. Era ótimo, porque além disso, quando dava à
tarde nós também conversamos com nosso Criador. Lógico que Ele era a
melhor parte da nossa conversa. Nunca ficávamos sem aprender alguma coisa nova.
Na verdade, vivíamos ansiosos para que chegasse logo a hora de encontrá-lo.
Como era bom!!! (uma lágrima escapa. Outro suspiro)
Meu trabalho continuava. Eu cuidava do jardim e, agora, além disso,
tinha o privilégio de cuidar da minha mulher, da minha companheira. Ela me
ajudava em tudo. Éramos verdadeiros amigos. Além disso, adorava o jeito que ela
me olhava, me admirava. Era claro que ela apreciava meu desejo de servi-la e
com tudo que tinha no jardim, eu aproveitava para dar-lhe o melhor.
Quantas vezes ela me pedia conselho para as coisas simples em como fazer
algo. Enxergava nitidamente que ela também amava minha maneira de protegê-la.
Sentia que ela valorizava meu trabalho e minhas conquistas. Aquilo muitas vezes
despertava nela o desejo do meu carinho no seu rosto, no seu corpo. A
acariciava com todo o prazer e me satisfazia nela e ela em mim. Ótima vida
sexual nós levávamos. Tudo isso que ela fazia por mim me deixava orgulhoso e
sentia-me totalmente honrado e respeitado. Com isso, eu a amava com todas as
minhas forças.
Abria-me para ela. Falava sobre minhas limitações sem medo ou receio.
Não tínhamos medo de conversar. Eu a escutava com toda atenção. Não me
preocupava em dar soluções para suas limitações, apenas a ouvia. Estava por
perto sempre que ela precisava. Esforça-me ao extremo para que ela se sentisse
segura e convicta da minha dedicação por ela. Eu a elogiava aos montes, tanto
aos gritos de amor como aos sussurros nos seus ouvidos. Não sabíamos o que era briga - estávamos sempre em paz. Sempre a estimei muito.
Sempre amei como toda minha alma. Eu deveria ter percebido a sutileza de como era perigoso deixá-la andar sozinha! A árvore; a serpente; os diálogos; a tentação; o início da queda (de repente uma inspiração profunda e uma expiração vagarosa).
Continua... ainda é só o começo.
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